"Escolas" Lenormand? Tradicional?

Quais as diferenças entre as "escolas" Lenormand? O que é e o que não é tradicional?


Bem , para chegar a esta resposta, vamos antes compreender a pergunta, assim como fazemos na hora de ler as cartas. Por volta de 1846, até onde temos conhecimento, surgiu o primeiro LWB (Little White Book - [livrinho branco]), ou livreto de instruções, acompanhando um baralho Petit lenormand. Este livreto foi assinado por Philippe Lenormand, auto-proclamado sobrinho e herdeiro das habilidades de Mlle Le Normand (possivelmente uma estratégia de visibilidade). O Livreto trazia significados para todas as cartas, bem como um método para interpretá-las, todas juntas, no que hoje conhecemos com a Mesa Real (Grand Tableau) - técnica derivada da cartomancia francesa que utiliza todas as 36 cartas - e, segundo as explicações de Philippe, a maneira de proceder a leitura dos significados trazidos por ele, de acordo com a distância entre cada carta e a carta do consulente ou outras (se perto, isso, se longe, aquilo). O livreto se popularizou, e, durante pelo menos 100 anos ele, ou alguma variação bem próxima do mesmo texto, acompanhou baralhos por todo o mundo, recebendo traduções em muitos idiomas diferentes. Até hoje, alguns baralhos Petit Lenormand, mundo afora, trazem as mesmas instruções em seus livretos.

Os significados das cartas conforme apresentados naquele texto, seguem o mesmo padrão de interpretação imagética de um outro texto, parte de um conjunto de 32 lâminas, entitulado "Les Amusements des Allemands", descoberto por Mary K. Greer no ano passado (2013), e publicado originalmente em 1796, em Londres. O autor refere-se às lâminas como emblemas que representam símbolos utilizados para divinação com borra de café, e traz uma lista de significados que, segundo ele, foram trazidas daquela técnica, para interpretar as lâminas em seu uso divinatório, e eram praticadas em Viena, Áustria. Ao observar este achado de 1796, você percebe a ligação tanto entre os seus emblemas ou imagens, quanto nos significados trazidos, com os emblemas ou imagens impressos nas cartas do "Jogo da Esperança" (Das Spiel der Hoffnung) de Johann Kaspar Hetchel, possivelmente publicado pela primeira vez em 1798 na Alemanha, quanto com os significados dessas mesmas cartas, reeditadas como Petit Lenormand, também na Alemanha, em 1845, cujas intruções de interpretação foram assinadas por Philippe Lenormand. Por outro lado, também é comum encontrarmos em livros antigos (ou conversando com descendentes de famílias em que havia alguma prática de cartomancia / leitura da borra de café) alguma conexão entre as duas práticas, que muitas vezes eram ensinadas juntas - dependendo da posição do símbolo (mais próximo ou distante da borda ou fundo da xícara), ele teria o significado alterado - assim como nas cartas, em relação ao consulente e à cartas chave/tema. Na cartomancia alemã (assim como na austríaca e húngara) a interpretação das cartas (com naipes alemães, os mesmos usados no Das Spiel de Hoffnung) depende da posição em relação às outras, ao consulente, e aos naipes. As cartas alteram seus significados em relação à sua distância e posição (acima e abaixo, à direita e à esquerda) da carta que representa o consulente e outras. Particularmente, a conexão me parece muito clara - entre a cartomancia contemporânea e regional ao Das Spiel der Hoffnung - possivelmente também muito familiar ao Philippe Lenormand, e o que conhecemos como "Método de Distância", apresentado por ele no comentado folheto. É possível que haja alguma conexão entre todos os pontos - a leitura da borra de café, comum na Bavária e outras regiões alemãs/próximas, com os métodos de leitura das cartas daquela época. Há muita especulação em torno da origem dos significados atribuídos às cartas por Philippe. Sabe-se que aqueles mesmos símbolos eram muito populares em livros que traziam emblemas e citações ou poemas de fundo moral, com o intuito de educar seus leitores, e publicados por toda Europa entre os séculos 17 e 20, e as citações ou poemas também eram muito semelhantes em sentido, com a interpretação estabelecida para as cartas Petit Lenormand. Podemos compreender, facilmente, que aquelas imagens faziam parte do cotidiano das pessoas daquela época, em especial da região européia onde nasceu e se popularizou o Petit Lenormand, justamente por conta dos diversos livros emblemáticos que eram publicados e aos quais o mesmo público que abraçou o baralho, tinha acesso. 

Sabendo, portanto, que aquele texto apresentado por Philippe Lenormand popularizou-se através de suas versões traduzidas em diversos idiomas, junto com baralhos que eram comercializados em toda Europa, ou melhor, em todo o mundo ocidental, é possível compreendermos também que aquelas palavras tenham sido interpretadas de acordo com a cultura e hábitos das pessoas que passaram a utilizá-lo. Ou seja, cartomantes holandeses liam o mesmo texto em holandês que os cartomantes franceses ou russos ou alemães, e apenas aplicavam a ele suas próprias cultura e hábitos, criando assim o que podemos entender como "sotaques" para a linguagem Lenormand. Aquilo que hoje definimos como estilo, e até bem pouco tempo como "escola", não é, na verdade, mais que o sotaque local do leitor. Por exemplo, na Bélgica e Alemanha é comum que se defina O Urso como uma carta que representa uma mulher, pois a heráldica antiga desses países representava as suas rainhas com ursos, e na França e Espanha o Urso representa um homem, pela natureza física de força e poder que o animal representa. Assim como A Lua, na maior parte da Holanda é vista como a carta de trabalho, por trazer em seus significados "reconhecimento e sucesso", e serem estes conceitos associados ao trabalho, assim como estabilidade é um conceito também associado ao trabalho, e por isso na Alemanha se utiliza A Âncora como carta de trabalho, ou mesmo A Torre. Por outro lado, um cartomante belga, ao analisar a Mesa Real de seu consulente, no que se refere a trabalho, e encontrar a Lua rodeada de cartas negativas, possivelmente vai olhar também para A Âncora para mais detalhes, assim como o contrário com o Alemão. Ou seja, fica claro que não se definem "escolas" pelo sotaque que a linguagem assume - português continua sendo português, seja ele falado no Brasil, ou Portugal, ou na China. Por falar em Brasil, muito se discute o fato de o estilo brasileiro ter adotado um significado tão diferente para a carta O Trevo. Se você voltar à tradução do texto de Philippe Lenormand, que dizia "2.Trevo : trará sorte, rodeada de nuvens são um prenúncio de muitas tristezas, mas perto da carta que representa a pessoa, a tristeza não vai durar por muito tempo e haverá um bom final" , perceberá que facilmente o leitor pode tê-la interpretado como carta de obstáculos, especialmente se nas primeiras tentativas de interpretação da Mesa lhe saiu essa carta próximo de As Nuvens. Assim como o Europeu, ao interpretá-la, entendeu que, se saía longe de As Nuvens era boa, e se diminuia a duração do problema apontado pelas Nuvens quando próximo do consulente, então, claro, se tratava de uma carta de boa sorte.

Veja que, a partir daí, podemos perceber claramente o que difere - ou não - um estilo de outro. E talvez seja bem mais compreensível o iniciante dizer que segue um determinado professor, do que o estilo ou escola de um país. Faz mais sentido dizer que sigo o estilo Erna Droesbeske ou Iris Trepner, ou ainda que jogo como Malkiel Dietrich, Björn Meuris, Andy Boroveshengra, Odete Lopes ou a  Katja Bastos, já que, na verdade, as diferenças são acentos e não novas tradições. É comum que, a partir de determinado ponto, em que os conceitos da Linguagem estão firmes e definidos, o leitor estude, conheça novos estilos e, a partir de uma estrutura bem definida, ele discerne o que amplia sua interpretação, daquilo que fere seus princípios, e/ou da tradição que segue.

É claro que neste ponto, chegamos a uma outra questão. O que é e o que não é tradicional? Bem, tradicional é todo método que deriva, ou foi construído, a partir do original de Philippe, e baseado no conhecimento e nas tradições populares dos séculos 18 e 19 da Alemanha, onde nasceram nossas cartas (e claro que é perfeitamente aceitável a extensão cultural da mesma época para França, Inglaterra, Holanda, Áustria, etc). Não tradicional, é o que sobrepõe a simbologia interpretada com base na intuição e sensibilidade do leitor, e não nas técnicas antigas. E aí temos assunto para uma outra conversa, não é mesmo? Afinal, é claro que a intuição e a sensibilidade são super bem vindas e importantes na cartomancia, seja com PL ou outro sistema. Mas qual a sua estrutura, em que se baseia sua interpretação?


(Imagens de um Folheto, do século 19, assinado por Philippe Lenormand)


Um comentário:

  1. Então, posso afirmar que com a experiência posso criar meu próprio "dialeto lenormandês", certo?

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